Os Tribunais na era
da interdependência global
Estamos numa era de interconexão e interdependência
permanente à escala global que acabou com o caracter estanque dos mundos
antigos que mal se conheciam ou nem se conheciam.
É certo que vários deles tinham contatos esparsos
recíprocos; basta pensar no impacto profundo que teve no imaginário europeu as
descrições de Marco Polo sobre a China trazendo notícias de riquezas, culturas
e gentes que o horizonte dos europeus não concebia sequer.
Mas a globalização moderna começou verdadeiramente com
as navegações iniciadas nos sécs. XIV/XV por portugueses e espanhóis, logo
seguidos de ingleses, franceses e holandeses.
Antes delas tínhamos, no essencial, o mundo americano
pré-colombiano (com impérios vários), o mundo africano abaixo do Saara, o mundo
mediterrânico de que o expoente máximo foi o império romano, o mundo oriental
com população e um continente imensos donde emergiram civilizações
diferenciadas.
Ao constante contacto de continentes e gentes que se
foi alargando e aprofundando nos séculos seguintes correspondeu uma evolução
tecnológica consequente que aproximou o espaço e o tempo; com as tecnologias de
comunicação à distância, marca de água do nosso tempo, todo o mundo está à distância
de um olhar.
À intercomunicabilidade permanente que assim se foi
gerando, sobreveio necessariamente uma intercomunicabilidade económica, uma
influência recíproca de ideologias e soluções, sem embargo de cada civilização
manter ainda a matriz daquilo que a distingue, a formatou e a fez sobreviver.
Tal como os homens, as civilizações também têm memória
que nunca desaparece mesmo nos momentos críticos em que parece que o passado se
esqueceu; e quando menos se espera, ela regressa para revigorar ou conferir
forma nova a movimentos sociais que nela se ancoram e se fundam.
X X X X
Num mundo tornado cada vez mais pequeno, qual o papel
do Direito e dos Tribunais?
O Direito mais não é senão um conjunto juridificado de
comportamentos sociais que, a não serem cumpridos voluntariamente, podem ser
coativamente impostos.
O Direito é, por isso, um regulador social.
Não esperemos do Direito aquilo que ele não pode dar:
o Direito não modifica estruturalmente as sociedades, apenas as regula.
Significa isto que a força do Direito é tanto maior
quanto mais solidificada e estabilizada estiver a sociedade e quanto maior for
a coesão social.
Como regulador, é então que o Direito encontra o seu
ponto máximo; encontra-o nas sociedades evoluídas onde o coeficiente de Gini é
menor (ou seja, onde é menor a distância entre ricos e pobres), e, por isso, é
maior a coesão social.
As sociedades transformam-se à medida exata da
evolução tecnológica que altera as estruturas sociais, as ideologias vigentes
(hegemónicas ou não) e os comportamentos humanos; o Direito – como parte
integrante da ideologia social – carrega igual pulsão na sua própria evolução como
regulador normativo.
X X X X
As migrações serão, por isso, uma das grandes questões
a que assistirá o séc. XXI, porque serão um efeito lógico da facilidade de
comunicação, de informação e de transporte.
Os homens sempre migraram das zonas mais pobres com
gente a mais para zonas mais ricas com gente a menos; ademais, a História
ensina-nos que as civilizações hegemónicas tendem a reproduzir-se menos,
compensando a queda demográfica com a chegada de povos de outras regiões e
outras paragens.
Daí que migrações e multiculturalismo andem, quantas
vezes, associados; a bíblica Torre de Babel pode ser vista, pois, como uma
antevisão emblemática dos nossos tempos.
As migrações colocarão às autoridades estatais e
principalmente aos Tribunais dificuldades acrescidas porque por eles passará a
defesa dos direitos fundamentais do Homem, já que quem migra pode ser um alvo
privilegiado de agressão por força da sua debilidade.
É aqui, nesta encruzilhada, que se situam os tráficos
de seres humanos, seja para a imigração “tout court”, seja para exploração
sexual ou exploração de trabalho forçado de quem chega e fica, às cegas, num
país de acolhimento.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e, na
Europa, a Convenção Europeia correspondente, devem ser a plataforma jurídica
norteadora dos Tribunais na defesa dos direitos fundamentais de personalidade
em casos destes; entre nós, obrigação tanto mais vinculativa quanto a Declaração
Universal é parte integrante da Constituição portuguesa.
Mas o multiculturalismo neste novo mundo implica
questões com denominadores comuns ou similares.
Desde logo, o respeito pelos direitos das minorias.
Os povos e as civilizações têm memória histórica (como
acima se disse) que se transmite geracionalmente; num mundo multidimensional o
respeito pela identidade dos mais pequenos é uma consequência lógica da
igualdade e da biodiversidade dos povos e das nações.
O tempo do aniquilamento cultural do dominado pelo
dominante não faz sequer sentido por ser um simples extermínio e porque
desaparece também aquilo que de original e diferente tem o que foi eliminado.
X X X X
O mundo globalizado vai ser obviamente o palco ideal
para o bem e para o mal.
E neste último estará necessariamente o crime
transnacional organizado.
Não falamos apenas no problema mundial do tráfico de
droga que gera um universo económico à parte; falamos de igual modo dos crimes
transnacionais de colarinho branco (com influência direta nas crises económicas
que se propagam em cadeia) e no terrorismo organizado.
No tocante a este último há que saber definir, com
rigor, o âmbito exato da palavra incriminatória; porque a História ensina-nos
que todos os movimentos de libertação foram apodados de terrorismo pelo
dominador até serem consagrados como o poder legítimo de povos que conquistaram
a independência.
Foi assim com as colónias europeias da Ásia (Índia,
Vietname, Camboja, Paquistão, etc, etc.), da América (os EUA nasceram como
violentos foras-de-lei que enfrentaram a pátria-mãe), da África (nós, portugueses,
vivemos, ainda há pouco, cronologia recente).
Mas essa deformação não é só de agora: um dos nossos
heróis à época da reconquista da Península Ibérica, no séc. XII, Giraldo Sem
Pavor, que tomou e recristianizou Évora, aparece descrito por um cronista da
Beja árabe segundo os cânones do terrorista moderno.
Ou seja, a definição exata dos limites de crimes
graves de expressão internacional ou transcontinental deve ser uma das
prioridades do futuro sob pena de o direito penal internacional ser usado como arma
de arremesso em função de interesses conjunturais dos países hegemónicos à
escala mundial.
X X X X
Entre
os direitos coletivos essenciais à sobrevivência da espécie humana não se
esqueça a defesa do planeta e do meio ambiental que não diz respeito a alguns
mas a todos.
Mas para tanto não basta – como em relação a tantas
outras coisas – a boa vontade dos juízes ou o bom funcionamento do Poder
Judicial; é preciso um empenhamento total dos grandes estados, nomeadamente dos
grandes poluentes, porque sem isso o planeta (como sistema fechado que é)
inquinará culpados e inocentes.
O mesmo se diga dos elementos básicos de subsistência
que trarão incógnitas futuras, o mais evidente dos quais será a água.
Perante o leque enorme de equações que a
interdependência e globalização transportarão no seu bojo, o papel dos
Tribunais só assumirá um escalão superior se, a montante, houver uma concertação
dos estados que consiga fixar o quadro jurídico internacional em que aqueles se
moverão.
É óbvio que à escala nacional e regional os Tribunais
terão sempre um papel não despiciendo centrado em dois vetores incontornáveis:
a defesa dos direitos de personalidade e a resolução dos litígios em prazo
razoável.
Mas, à escala global, o papel dos Tribunais será
sempre distorcido se os estados poderosos abrirem sempre exceções para si
próprios mas nunca para os outros, negando, afinal, um dos marcadores genéticos
do Direito: a igualdade de todos perante a lei.
Sirva de exemplo o que se passou com o T.P.I (Tribunal
Penal Internacional) que se pode replicar em diversos outros casos; e sirva de
guia Harold Pinter, o inglês galardoado, em 2005, com o prémio Nobel da Literatura,
quando, no seu discurso de aceitação, exigiu o julgamento penal internacional
de quem expressamente nomeou e pelos factos que expressamente nomeou porque –
como ele próprio disse – o direito não é para ser cumprido apenas pelos
pequenos.
Luís António Noronha Nascimento
Dili, 22 de Outubro de
2012
IX Conferência do Fórum dos
Presidentes dos Supremos Tribunais
de Justiça dos Países e
Territórios de Língua Portuguesa
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