segunda-feira, 27 de junho de 2011

A CHANCELA – IV

Chegou do Tribunal para o almoço e repreendeu o filho mais novo, dizendo: «sobretudo nunca te esqueças de quem és filho» – isto porque, segundo Berta, o rapaz «andava na gandulagem com os da 'ilha'». Depois sentou-se à mesa e leu uma carta recebida do oficial Pereira. Este comunicava a sua transferência para o mesmo Tribunal em que o Prado servia. Berta disse: – «Era um pobre diabo». Madalena ajuntou: – «Mas muito prestável». Aquela disse ainda: – «Bebia bastante». O Prado negou, afirmando que não acreditava. Madalena disse que «cheirava». Berta carregou: – «Bastava olhar para a cara dele», ao que o homem ripostou com alguma secura: – «Não é uma prova séria. Acima de tudo, era um funcionário dedicado». E dirigindo-se ao filho mais velho: – «Andou contigo ao colo, muitas vezes». Depois recordou episódios ocorridos na Ilha e no fim disse: – «Estou velho; já lá vai um par de anos». A mulher observou que os anos não a apoquentavam, mas o «peso». Repetiu o que afirmava muitas vezes: que sempre desejara ser «magrinha» como a irmã. O Prado considerou que isso dependia da «natureza das pessoas». Ela atribuiu o facto aos partos sucessivos e comentou: – «Não fiz outra coisa, depois de casar contigo: filho fora, filho dentro. Ainda se tu ganhasses o suficiente». Ele não respondeu logo. Olhou de relance para os filhos e só depois se pronunciou: – «Deus assim o quis. Nunca devemos contrariar a sua vontade». Ela, com tristeza: «Chego a pensar que não olha para nós como merecemos». Ele, prontamente: «Não deves dizer isso». E levantou-se, dirigiu-se para a saída, abafou o pescoço no cachecol, pôs o chapéu na cabeça, tomou a pasta e saiu, para tomar o «eléctrico» até ao Jardim da Cordoaria.
Os passeios, de granito, são estreitos, desnivelados e toscos. Nos umbrais que ladeiam as ruelas, vêem-se ainda argolas de ferro carcomidas, que em tempos não muito recuados serviram para segurar as rédeas das muares. As bocas das casas bafejam um hálito nauseabundo e quente de estômago sobrecarregado.
Mais abaixo, a passagem estava atravancada de canastras de peixe e cestos de fruta e de nastro. Uma das vendedeiras estava a cortar um goraz, utilizando uma faca gordurosa, ao mesmo tempo que vociferava contra o filhito de peito, chamando-lhe «badalhoca», por lamber as pedras ensanguentadas. Entronado no tejadilho de um automóvel, um gato com queimaduras e olho vítreo mantinha vigilância permanente sobre dois cães que brigavam perto.
Os habitantes do sítio já sabiam quem era aquela personagem que durante a semana subia e descia, a pé, duas vezes por dia, o dédalo imundo. Constava que era «por ordem do doutor», mas os advogados conheciam o motivo real daquelas caminhadas e a razão por que ninguém lhe oferecia o carro. É que, logo após a sua nomeação para a cidade, tinha recusado a boleia de um advogado, pretextando que necessitava de «exercício». O caso granjeou-lhe desde logo uma certa auréola de independência.
Entrou na primeira porta que encontrou aberta e encontrou-se num corredor mal iluminado. Na parede, à sua direita, um convite – uma placa metálica representando uma mão com o dedo apontado para o fundo obscurecido, aliás vedado por uma porta, onde se lia: «Penhores, jóias, pratas, roupas, rádios, relógios, etc.». Atrás dele, entraram de roldão outras pessoas. – «Puta de vida!», – exclamou uma peixeira, sacudindo a chuva das roupas do filho, depois de arrumar a canastra do peixe. O juiz tossiu e olhou para os sapatos. Brilhou um relâmpago. Ouviu-se o estrondo do trovão. A enxurrada principiou a correr pela viela como um ladrão. Aliás, só nestas ocasiões e com este aparato diluviano os detritos eram expectorados para o rio Douro, pelas gargantas fundas dos bairros marginais.
O dono do estabelecimento apareceu no corredor. E disse: – «Boa tarde». As mulheres corresponderam: – «Olé, Senhor Samuel». Uma delas dirigiu-se-lhe em seguida: – «Para vossemecê o mau tempo não conta; nós vimos aqui a trazer-lhe os trapos». O penhorista sinalizou com olhares repetidos a presença do juiz, que todos conheciam. A peixeira encolheu os ombros e disse: – «Ora! Ninguém o obriga». Todos ouviram e compreenderam a referência, mas ninguém olhou para a banda do juiz. Apenas outra mulher acotovelou a peixeira e disse em voz baixa: – «Cala-te». E houve um bom silêncio, durante o qual se ouviu melhor o som cavo da bátega.
Entraram depois duas mulheres e um homem, este munido de uma gaiola com um pintassilgo. – «Ficaste como um pito», – disse a peixeira. Apertaram-se uns contra os outros para dar lugar às pessoas que chegavam e ficaram todos calados, a ouvir as chicotadas dos pingantes, até que à entrada, o homem do pintassilgo, cheio de reticências, principiou a narrar em surdina o caso do dia anterior, que relacionou com o do «seu pequeno», que andava por ali com os outros e «via coisas que não devia». A pouco e pouco, a maioria das atenções concentrou-se naquele ponto e a voz masculina, por isso, baixou mais, até se extinguir.
Os respingos atingiram o degrau da soleira derramando-se pelo soalho. E as pessoas que estavam mais próximo semicerraram a porta, de forma que o recinto ficou iluminado só pela lâmpada poeirenta, aliás permanentemente acesa durante as horas em que o estabelecimento funcionava. Então a peixeira reatou: – «Os Bancos são na Baixa. Este é um banco sem pernas, não é, Senhor Samuel?». O penhorista voltou-se rapidamente, abriu a porta envidraçada, demorou um pouco. Reapareceu com uma cadeira que limpou com a mão, oferecendo-a ao juiz. Trocaram breves palavras. O Prado recusou: – «Isto passa já». O ofertante pareceu não saber o que havia de fazer da cadeira. As restantes pessoas fitaram-no por um instante, sem olhar nunca para o juiz. O penhorista reabriu a porta, colocou a cadeira do outro lado do corredor e declarou com alívio que «o vendaval estava a passar».
Entretanto, formara-se no corredor um intenso cheirum. O juiz foi-se aproximando da saída, levou dois dedos à aba do chapéu preto e esgueirou-se. Romperam então os comentários:
– Escusava disto.
– Ganham um dinheirão.
– É um forreta!
– Diz que é por ordem do doutor,
E as atenções voltaram-se de novo para o homem do pintassilgo: – «No fim, a mulher desacordou; os filhos queriam ajudá-la; os guardas não deixaram». Perguntaram-lhe a idade do filho e ele respondeu com a repugnância de quem é forçado a viver nas imediações de um cemitério: – «A mulher apanhou dez anos; o meu pequeno tem seis». Perguntaram-lhe ainda qual tinha sido «a falta da condenada» e ele respondeu: – «Diz que roubou uns penduricalhos de ouro a uma velhota avarenta. O irmão da condenada, à saída, atirou um encontrão ao advogado e aquilo desandou num arraial, com cabeças partidas».
Foram-se aproximando da porta: – «Como é que um juiz pode ter coração?». Abriu-se uma clareira na vertical. Uma voz de mulher chamou do alto de um terceiro andar. Desceu uma corda da janela sustentando um cabaz que parou na boca de uma locanda. Duas mãos depositaram dentro dele qualquer coisa e a corda voltou a vibrar e o cabaz a trepar, aos arranques.
Cessara a chuva e o trovão, mas a torrente continuava a jorrar pela ruela. Uma criança plantou-se de pernas abertas no meio da ladeira e o líquido abriu em dois leques. Surgiram logo outras crianças de pernas delgadas e o sítio encheu-se de repuxos, molhando e irritando os transeuntes. Eram umas crianças diferentes das outras, sujas, atrevidas, imorais, delgadas como bonecos partidos. Torciam as antenas dos automóveis, arremessavam pedras, proferiam palavrões, agarravam os casacos dos adultos, a pedir esmola.
Pelo fim da tarde, o Pedras surgiu, como sempre àquela hora. Abriu a luz do gabinete e disse: – «Boa noite, menino». O Prado acabava de fazer os julgamentos e esfregava as mãos. E disse: – «For hoje, acabou». Fechou em seguida a janela. Voltou a esfregar as mãos: – «Hoje correu-me bem; já despachei tudo». Entrou um funcionário com um volume de processos. Saudou o Pedras com uma vénia. Logo que saiu, o Prado reatou: – «Mandei agora mesmo um gajo para a grelha. O tipo quis intrujar-me e eu não admito». Voltou a esfregar as mãos. E o Pedras comentou: – «É assim mesmo» –, acrescentando logo: – «Enquanto pudermos, é preciso conter a vaga. Cada época tem os seus juízes e não tardam aí outros juízes mais juízes do que nós».
O Prado tirou a beca, colocou-a no cabide, sentou-se, esfregou as mãos e principiou a assinar mandados de captura. O outro prosseguiu: – «Nós comprometemo-nos. Não previmos como tudo isto havia de se precipitar». – Sentou-se e disse ainda: – «Atrasámo-nos, é o termo próprio e só nos resta aguentar. A nossa pior ilusão foi supormos que ainda julgávamos os outros, quando a verdade é que há muito são eles que nos estão a julgar a nós. Estas coisas acabam sempre por dar nas vistas».
– Lá vens tu com as tuas ideias, – disse o Prado, sem levantar o rosto. – E perguntou logo, a cortar: – Há alguma novidade sobre o aumento de vencimentos?
O Pedras respondeu-lhe: – «Os juízes não merecem mais do que aquilo que recebem. A burguesia fabrica-os à sua medida e encomenda leis cada vez mais perfeitas, reduzindo-nos a liberdade de apreciação. Mas os políticos pressentem que não podemos continuar a cobrir os seus desaforos. Noutros tempos, acrescentou, o suspeito de um crime era submetido a torturas até que confessasse, mas esta confissão só tinha valor quando feita na presença de um juiz. As coisas não mudaram muito, podes crer. Dispomos de um poder temível que aliás não nos serve para nada e é-nos concedida uma protecção legal que nenhum órgão do Estado possui, nem o próprio chefe do Estado. O presidente da República presta juramento perante um magistrado judicial e pode ser julgado em certas condições pelos seus actos. O juiz é o único órgão do estado que não presta contas a ninguém. Não podemos ser censurados, nem corridos dos nossos lugares. Somos bestialmente independentes». Cruzou as pernas e continuou: – «Somos semelhantes a Deus, que aprendemos a amar, não obstante as suas crueldadezinhas. Tudo isto é estranho. É evidente que existe uma razão muito forte para que as leis se preocupem tanto connosco. É que os juízes e os respectivos apêndices são as colunas mestras do velho edifício em ruínas. Olé! Mas com o tempo foram perdendo terreno e apareceram leis formosas a repetir que nós somos uns tipos excepcionais, dignos, independentes, austeros, etc. Conversa fiada... Em boa verdade, nós estamos a perder função histórica. Repara nisto: aqui, nos tribunais do crime, quase só julgamos os desprotegidos – pequenos larápios, prostitutas baratas, ébrios e alguns sedutores inocentes de mulheres batidas. É uma justiça pobre e para pobres. Por isso, os nossos colegas dos tribunais cíveis e também os próprios advogados e funcionários nos consideram juízes baratos. E com razão: o militar, o nobre, o clérigo, o próprio juiz tiveram e alguns ainda têm o seu foro especial, de tal modo que durante muito tempo só eram julgados nos tribunais comuns os que não pertenciam a nenhuma dessas categorias. Daí uma tradição, uma justiça mais pataqueira para os clientes destes tribunais».
Pela primeira vez o Prado levantou o rosto, para dizer que «estava farto do crime» e que logo que lhe fosse possível pediria a transferência.
– Espera aí, menino, – acudiu o Pedras, levantando a mão. – Não confundas. Aqui é que tu és juiz. Lá em cima, na Cordoaria, não julgas, não passas de um aferidor de pesos e medidas. Atribuis cinquenta contos a um, uma casa a outro. Aqui não é assim; aqui, julgamos homens. Lá em cima, normalmente, julgam-se causas, julgam-se processos. Muitas vezes não vêem a cara do cliente. E é por isso que os juízes do cível não incomodam tanto como nós. Nota que os atritos com a Polícia e com os ministérios é aqui que surgem. É aqui que o juiz tem oportunidade para mostrar que é independente. Aliás, os graúdos já não recorrem aos tribunais para dirimirem as suas questões.
– Aqui, ou lá, – volveu-lhe o Prado, – nunca deixei de me considerar absolutamente isento. E nunca tive questões com a administração.
– Mas tu julgas, – ripostou o Pedras, na sua voz aguda, – tu julgas... Supõe que te apresentam um ladrão confesso. Supõe mesmo que o apanharam com a boca na botija. Eras capaz de o absolver? – Ruborizou-se e tremeu-lhe o lábio inferior.
O Prado respondeu que não; que isso equivaleria a «uma autêntica denegação de justiça».
– Multo bem, volveu-lhe o Pedras. – Não eras capaz. Logo, não és independente. Se o fosses, – acrescentou, erguendo o indicador, – terias a coragem de admitir que um ladrão confesso pode ser absolvido. Eu tive um processo contra uma senhora dita de bem que furtou um agasalho numa loja de modas. Esse processo acabou por ser arquivado. O advogado requereu prontamente que fosse submetida a exame psiquiátrico. Julguei-a irresponsável, cleptómana. E creio que bem. Mas depois disso fiquei a magicar por que é que muitos dos cadastrados por furto não eram submetidos a esse exame. Certamente que, entre tantos, alguns seriam fatalmente cleptómanos. Surgiram-me dois casos que me pareceram de tentar. Perdi o meu tempo. Ordenei mais outro e outro exames. Pouco ou nada adiantei». – Interrompeu-se. O outro continuava silencioso, a assinar mandados de captura. E o Pedras continuou: – «Um dos réus era um homem de meia-idade, a quem a clausura prolongada acabou por arrebatar o vigor sexual e que, logo que libertado, às vezes até no regresso da cadeia para casa, praticava novos furtos, pequenos furtos sem sentido económico. Dizia-me o tipo: – «Isto é superior a mim, senhor juiz». Concluí então que o exame médico era ainda um luxo, para não ter de concluir que em certa classe de pessoas não existem cleptómanos. – Levantou a mão aberta e prosseguiu: – Ora bem. Agora vamos à leizinha. O juiz pode julgar livremente, de acordo com a lei e a sua consciência. Por isso, havendo exame psiquiátrico, o juiz aprecia-o livremente. É também de lei. Mas se o relatório médico afirma com todas as letras que o ladrão é criminalmente responsável e o juiz se convence do contrário? Ai é que funciona verdadeiramente a chamada independência do juiz. É quando uma certa camada social manda dizer sim e o juiz diz não! Já perguntaste alguma vez a ti próprio porque é que o homem furta? E acreditas que o castigo resolve tudo? Nós nunca podemos avaliar em profundidade a razão de ser deste crime. Da casa de uma senhora idosa soube eu que os parentes, sempre que podiam, furtavam pequenas coisas «abafáveis»: cinzeiros, castiçais, copos, etc. A tragédia das pessoas que caem aqui é serem julgadas por tipos como nós, que não as podem compreender, pessoas sem vícios aparentes, muito purinhas. O povo não confia em nós. A propósito, contaram-me hoje uma, com muita graça. Há um réu que anda a monte». – Sorriu, tirou os óculos e continuou: – «A mãe sabe onde ele pára e falou com o advogado: «O meu filho, Senhor Doutor, diz que se apresenta no dia do julgamento, mas só se o juiz for aquele que gosta da pinguinha». Estás a ver? O povo quer ser julgado por pecadores.
O Prado riu-se e chamou-lhe «doido varrido». E ele, repentinamente: – «Olha lá, menino, já me ia esquecendo; como é que arranjaste a ficar na televisão, ao lado do chefe?». O Prado respondeu-lhe que foi «por mero acaso». O Pedras disse que não acreditava, que a atitude do colega era «fraudulenta» e que não devia «deixar-se corromper pela máquina da administração». Perguntou-lhe, ainda, sem transição, como tinha decorrido «a ministerial jantarada» e se já tinha lido Kafka. E continuou sem aguardar resposta: – «Pois não; só lês coisas inúteis. E afinal o mais difícil é a vida. É por isso que os juízes, muitas vezes sem darem por isso, se transformam em instrumentos de qualquer política. Basta-lhes uma mesa e uma cartilha da lei».
– Não, – disse o Prado, categórico, erguendo o rosto; fica-nos sempre uma larga margem de interpretação.
O Pedras retorquiu-lhe: – «Isso é para os casos raros e para os juízes de excepção. Rigorosamente, só se interpreta uma lei em profundidade quando há interesse em alterar-lhe o sentido; a maioria dos casos que tratamos aqui nesta oficina de torturas não merece, da nossa parte, bem o sabes, grandes subtilezas jurídicas. Dispomos de leis ditadas por uma minoria; interpretamo-las consciente ou inconscientemente de acordo com os interesses dessa camada. Nisto consiste o que vulgarmente se chama com grande pompa a independência da magistratura judicial. Sem este mínimo de «honestidade», o juiz não está em condições de fazer carreira. É fácil encontrar homens honestos para qualquer profissão. É o caso dos porteiros, das criadas de servir, que têm de ser «fiéis». O juiz precisa de fechar-se em si próprio para corresponder à imagem que se exige que os outros façam dele. Cada grupo tem a sua moral própria. Mas por vezes – acrescentou, erguendo a mão trémula e apontando-lhe o indicador, – exige-se do magistrado uma honestidade mais vincada: nos casos em que a tal minoria não dispõe nem lhe convém fazer publicar uma lei para certas situações de crise, ou quando se torna imperioso que certos actos de certos homens sejam abrangidos por uma norma que os não prevê, ou ainda quando essas acções não devam ser abrangidas por leis que claramente as prevêem. É evidente que isso só se exige de certos juízes – os mais ambiciosos ou incompetentes.»
O Prado comentou, com aparente tristeza: – «Essas loucuras prejudicam-te». O Pedras carregou: – «Não esqueças que sou inamovível; os juízes são independentes, inamovíveis e irresponsáveis. Mas repara nisto: as sentenças brotam das leis e o legislador é soberano, segundo nos ensinaram. Porque é então que os legisladores não hão-de ser também independentes, inamovíveis e irresponsáveis? Isso é só para nós. Um grande privilégio. O legislador cria uma abstracção, que são as leis; o juiz, ao interpretá-las, cobre-se com elas, não se dando ao trabalho de pensar em quem as fabrica. O juiz é o papa da infalibilidade, o único sobrevivente dos monarcas absolutos. Determina o que é justo e injusto, a verdade e a mentira, mantendo assim o que se chama o equilíbrio social. Claro que este trabalho só podia ser confiado a ignorantes. Nós somos técnicos de leis e só isso e entregam-nos a solução de problemas ingentes que ignoramos até à raiz. Não recebemos ordens, não podemos ser corridos dos lugares. Somos irresponsáveis, como diz o estatuto judiciário. A classe ditosa enquadra-nos num feixe de regras abstractas e diz-nos: "Sois uns gajos bestiais. Agora arranjai-vos. Mas cuidadinho, que as leis são para se cumprirem". – E o Pedras saiu, finalizando com um largo sorriso: – Somos como os farmacêuticos: aviamos receitas».
O Prado arrumou os processos, empilhando-os sobre uma pequena secretária, fechou a estante, guardou o lápis e a borracha na gaveta da secretária, rectificou a posição do maple, soprou o pó do tampo da secretária, aproximou-se do janelo, sondou com uma olhadela a outra margem iluminada e a curva do rio. Baixou a cortina. E sentiu-se mais só, no casarão silencioso. Ele próprio costumava dizer que «estava condenado a viver como um leproso». Pensou então que a carreira «andava um tanto abandalhada»: não havia assistência médica, nem qualquer tipo de ajuda e os vencimentos «eram uma miséria». Por isso mesmo Berta insistira sempre em arranjar um emprego, «mas o seu lugar era no lar», além de que não seria próprio e as mulheres que trabalhavam eram mais autoritárias, quando não se transformavam «numas levianas». Tudo certo, pensou ainda, mas o Pedras «falava demasiado». Era, em suma, «um tipo queimado e as coisas não se resolviam assim». Reconheceu que devia pô-lo um pouco à margem. Não convinha que o vissem muitas vezes na companhia dele.
Lembrou-se entretanto de Madalena. Nesse dia, Berta saiu de casa mais cedo do que o habitual e foi ela quem lhe serviu o pequeno-almoço. Estava em roupão. Admitiu que o abrira intencionalmente, deixando ver o decote rendado da camisa de noite. Fez então um esforço, mas não encontrou palavras para traduzir o que há muitos anos pretendia dizer-lhe. Era sempre assim, quando se encontravam a sós. Em vez disso, afagou-lhe a mão com que lhe servia a manteiga. Ela disse então, benevolamente: – «Já temos idade para nos deixarmos de fantasias». E voltou para a cozinha, reaparecendo quando ele estava prestes a sair. – «Não te esqueces de nada?» – perguntou. Ele disse que não, palpando a algibeira onde guardava os óculos.
Parou no meio do gabinete e admitiu que «ela tinha ainda muita classe». Ao mesmo tempo, com a mão na algibeira da calça, espremeu o sexo. Depois rebuscou nas algibeiras do casaco, donde tirou um rectângulo de papel, observando-o com interesse à luz da lâmpada. Era o «menu» impresso em letras douradas e rubricado pelo ministro, no final do banquete do dia anterior. Voltou a guardá-lo, esfregou as mãos e ergueu o rosto para a luz, a reviver o acontecimento. A mesa estava disposta em U, com flores espalhadas na cabeceira. Quando o governante chegou, cessaram os murmúrios por todos os recantos do grande refeit6rio e os magistrados abeiraram-se para os cumprimentos: primeiro, os desembargadores, depois os juízes de primeira instância e finalmente os delegados. Um dos oradores tratou-o por «mestre insigne». E o ministro disse que «a magistratura judicial não era uma carreira qualquer, exigindo por isso mesmo e mais do que qualquer outra muito sacrifício e dedicação por parte dos que tinham a honra de a servir».
Falara nisso à mulher, com entusiasmo. Foi, aliás, um dos promotores da homenagem e acompanhou o ministro até final, quando, já no passeio, o «automóvel preto» se aproximou rapidamente, depois de os agentes da polícia terem paralisado momentaneamente o trânsito naquele ponto da rua. E foi aí, justamente, que intervieram os da televisão. Percebeu logo que «também tinha ficado».
Berta apreciou muito o relato e perguntou, debalde, se o ministro tinha prometido qualquer aumento. Mas não; as condições económicas do país, em particular as despesas com a guerra do Ultramar não permitiam semelhante despesa.
Ela sentou-se para ouvir melhor: – «Foi nessa ocasião – disse o homem, – que ele me tomou o braço e me conduziu discretamente para um canto da sala». – «Só a ti?» – «Sim, só os dois». Ela, ainda: – «E depois?» Exigira mais pormenores, mas não havia mais nada, fundamentalmente, além daquelas palavras: – «Eu não me esqueço de si». Os colegas estranharam e pretenderam saber o que ele lhe tinha dito, mas em vão. O caso suscitara, por isso, interpretações várias. Comentaram depois a ausência do Pedras, que, por ser única, tomou foros de «escândalo», na opinião do Prado. A mulher aguçou: – «Esse está sempre no contra. É contra tudo e todos. Acho que não deves andar muito com ele». O Prado considerou que o facto de as eleições estarem à porta não justificava necessariamente que a homenagem ao ministro fosse «uma reunião de propaganda», como pretendia o colega.
Berta pediu-lho muito quo «seguisse à risca o tratamento para ficar bom depressa». E citou, mais uma vez, os nomes de dois colegas «mentecaptos», que, entretanto, e apesar disso, tinham passado à frente dele.
O filho mais velho também concordou que o pai merecia há muito ser nomeado para «o tal lugar, que era uma ficha e que sempre rendia mais umas c'roas». E Berta profetizou: – «Se Deus nos ajudar, o vosso pai vai longe. Coitado, bem o merece». E acrescentou rapidamente: – «Tenho de agradecer a D. Angelina».

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